quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Escuridão

Tela de Odd Nerdrum



Não há lua.

Um negrume denso, espesso

Brota da silhueta incorporada

Na noite.


Espero os passos incertos

Irem para o vazio estreito

Do silêncio.


O sangue alerta,

Dois olhos espreitam o frio.

Batidas cardíacas ressoam.


Uma dor de fenda, num espiral começa

Quebrando o circulo agonizante do medo.

Cada um rompendo o lado que habita.


Segue, cada um,

Para o lado oposto do encontro

Deixando emanações

E pulsações

Onde tudo se deu.


O afastamento é o escape

Frente à agonia do desconhecido,

Por medo dos clamores que a carne têm.

Por medo desse encontro torpe,

Que na escuridão da vida

Atravessa nosso caminho.

A Teia de Indra

Tela de Josephine Wall



Precipito-me no meio da faísca Cósmica.
Compartilho a consciência de um dedo divino,
Que aponta um clarão no horizonte.

Desfaleço ante a visão
De entrar na atmosfera densa.
Arqueio vulnerável, nas emanações
De lava fervente.
Meu corpo treme.
Apavoro-me desse sopro celestial
Que me retira do seio da certeza
Levando-me a essa teia de Indra.

Sigo uma estratégia silenciosa
Perfurando essa nuvem de gás,
Que embaça minha realidade.

Entrego-me a essa inevitável
Atmosfera terrena,
A esse compactuar humano
De querer ser cintilante.

Abro meu peito
Para sorver a delícia de estar
Nessa magia que infla o espírito.

Resvalo-me nesse fogo humano.
Derramo-me nesses instantes de alegria
Que seguem numa corrente selvagem.

Vou, mesmo sabendo
Que serei consumida
De minha primordial essência.

Que delicadamente, dia após dia,
Me afastarei até retornar
Ao que já era meu.

domingo, 21 de setembro de 2008

Guerreiro

Tela de Sir Edward (Coley) Burne-Jones



Vem e resvala-se

Na intimidade de meu tecido.

Beba de meu sangue até se saciar,

E da agonia que te consome estar livre.

Vem e derruba esse muro

Que nos impede de ser.


Sentencia-me a ser seu poente.

Transfigure-se como sol em mim,

Que me tornarei raios vagos de luz

Exaltando cada manhã de nossos dias.


Corte o ar e meu hálito

Com sua espada de aço.

Enterre em meu corpo blindado,

Sua força de guerreiro.


Reverbere com seu grito

Meu êxtase derradeiro,

Pois que cada dia

Traduzo sua língua desconhecida,

Para compreender seu poder sobre mim.

Outono

Tela de Pierre Bonnard



Quando a chuva de outono

Respingar em minha janela

Estarei te esperando.


A música soará intensamente

Das cordas de meu coração.

O vento há de dançar

Por nossa alegria.


Tochas serão acesas

Iluminando nosso jardim.

Flores exalarão perfumes,

Muito além, do que se pode sentir.


Seremos arrebatados pela relva fresca,

E ali mesmo, incrustados na terra

Exalando o que de mais antigo,

Tem os corpos.


Na confusão das emoções

Invadiremos um ao outro

Com nervos retesados.


Uma sinfonia tocará.

Galhos retorcidos se aquietarão

No cimo de meu corpo.

Glóbulos mornos de orvalho

Escorrerão no solo

Encharcando nossos pés entrelaçados.


Teremos o aroma doce das flores

E o inominável cheiro do amor.


Estaremos inertes

Na lassidão do esquecimento

Abandonados ao suspirar

Do fim da noite.


Ali, no segundo estreito

De meu olhar no seu,

Nada será como era,

Tudo será mais.

Vaso


Desconheço o autor



Vim pura e livre.

A essência foi conquistada

No clamor de minha liberdade.

Minhas escolhas foram propostas

Pela força de meu coração.


Fui arredondada em argila quente.

Dei voltas inteiras

No torno do oleiro mestre.


Decodifiquei meu corpo

Em partículas de areia e água,

Quando saí

Do propósito da criação divina.


Agora sou vaso

E só preenchida sinto o meu valor.

O Demolidor

Tela de Dino Valls



No silêncio de tudo,

Ele compunha versos alados.

Arquitetava palavras

Batendo um compasso

Dissonante e continuo

No emaranhado das letras.


Acariciava as silabas

Para formar seus poemas.


Ao toque da pena

Saltavam

De sua primordial forma,

Na folha quase branca.


Seguia numa lógica enlouquecida

Pelas promessas desconstrutivas.

Assim, num emaranhado de versos,

Ele se perdia para se achar.


Quando tudo estava pronto

E a folha preenchida,

Ele, como um demolidor,

Desconstruia todas as palavras,

Para juntá-las,

Num novo poema de amor.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Por quê

Tela de Amadeo Modigliani



Onde foi que me perdi de ti?

Em que canto enternecido da vida

Meu olhar se anuviou

E me perdi de ti.


O fio de Ariadne não foi o bastante

Para que eu te encontrasse

Neste labirinto perdido dentro de mim.


Tenho acumulado um tesouro por anos.

Ocultei nas estepes de meu corpo

Essa vontade nostálgica

De te ter dentro de mim.


Sonho com seu jardim de terra fresca,

Com tardes cálidas,

Nesse paraíso de promessas perdidas.


Te vejo interrogar meu corpo,

Rompendo peles,

Fazendo voltas no meu existir.


Depois, em halo sereno,

Parte como um servo

Que executa ordens.

Esquece-me em campo aberto

A perguntar: por quê?